Breve Introdução á Tradição de Dzogchen



Breve Introdução á Tradição de Dzogchen

A tradição espiritual chamada de Grande-Perfeição (Sanscrito. Mahasandhi, Tibetano. Dzogchen), também conhecida por Atiyoga (Yoga da Sabedoria Primordial), é uma tradição mística de não-dualidade que vem do Santo e Mistico, o Mahasiddha Indiano Prahevajra (Anandavajra), nativo do antigo Reino de Udiyana. Na sua essência é uma tradição de não-dualidade e contemplativa, não-ritualista, com uma profunda visão da realidade e métodos directos e profundos para atingir a realização directa da condição Absoluta do Ser e da realidade.

Mahasandhi, ou a Grande-Perfeição, em si significa a verdadeira condição do Ser e da realidade. Neste sentido o termo Mahasandhi não se refere a um conjunto de ensinamentos ou praticas, mas refere-se directamente ao estado fundamental da realidade, a verdadeira natureza do Ser, que é a perfeição total, a união de sabedoria-amor-energia. A tradição espiritual de Mahasandhi em si está para além de qualquer forma religiosa, é um apontar directamente para a essência da mente e da realidade, é sem-forma e fortemente experiencial na sua expressão. Deste ponto de vista poderíamos dizer que é a essência de toda a espiritualidade. Por outro lado, como abordagem e visão espiritual, manifesta-se como uma tradição independente por si própria, ou pode ser absorvida numa outra tradição religiosa - porque é a essência da realidade em si!

Como tradição, Mahasandhi nasceu e tomou forma no contexto das comunidades Budistas da India entre os séculos 5 e 7, e como tal encontra-se claramente inserida numa visão Budista, em particular da visão de Tantra Budista. 

Então, por um lado como uma visão espiritual, Mahasandhi refer-se directamente ao estado primordial do Ser; por outro lado, como uma tradição espiritual independente, oferece um conjunto de ensinamentos, explicações, praticas, meditações, i.e., um caminho espiritual completo que leva á descoberta da nossa natureza fundamental, e a da essência da realidade. - quando usado neste sentido é o caminho primordial que se chama Atiyana.     
Toda a realidade e fenómenos,
Todas as coisas, ambas de Samsara e Nirvana,
São primordialmente sem uma essência própria (without self)
E são totalmente para além de construções conceptuais.
Os seres permanecem no ciclo de existência ciclica porque se fixam aos fenómenos de forma ignorante.
Saṃsāra e nirvāṇa, e as diferentes alegrias e desaventos, de facto manifestam-se.
No entanto, no exacto momento da sua manifestação,
São simplesmente vazios de essência propria.
Descobre que são assim como ilusões.
Descobre que são assim como sonhos.
Os ensinamentos de Atiyana explicam que o mundo aparente e ilusório manifesta-se na Base Fundamental, ou Fonte Suprema, o estado pristino original, o É-o-que-É (suchness). Tudo o que se manifesta, quer os seres vivos confusos como os seres iluminados, manifestam-se inseparavelmente nesta Base primordialmente pura. Todas as manifestações são a vivacidade-energia natural da Base. Por não saber a natureza do 'ser' e de todas as manifestações como sendo inseparáveis, e da mesma natureza que a Base, os seres estão confusos.




A essência dos ensinamentos de Atiyoga é o reconhecimento do aspecto da natureza da mente chamado de 'Vidya', uma cognição-sapiência que é auto-cognoscente, não-criada, independente de objecto de conhecimento, não-dual e não obstruída. Esta Vidya como saber-primordial pode directamente, e completamente saber a natureza da Base e de toda a manifestação. Vidya em si é inseparável da Base, e como manifestação é Grande Amor e Compaixão; como a raiz de toda a manifestação é manifestação espontânea. Por outras palavras, é o aspecto puro cognitivo da natureza fundamental que se sabe a si próprio como o É-o-que-É (suchness) e toda a diversidade de fenómenos, como inseparáveis da Base.

Objectivo é o reconhecimento directa da verdadeira natureza do Ser 

Não-Dualidade

Quando usando o termo não-dualidade é necessário tomar em atenção que o significado deste termo é diferente de outras tradições que usam a mesma expressão. A não-dualidade em Atiyana não é a visão de uma singularidade monista existente onde tudo é igual e uno (tudo é Um). Por outro lado pode existir a tentação de consider esta não-dualidade, ou a base, como uma forma mais fundamental de existência, mas não é também esse o sentido de não dualidade em Dzogchen. Em Dzogchen não-dualidade, de forma simplista, significa que na Base, que é a fonte de toda a manifestação, todos os fenómenos são inseparáveis, uma grande inseparabilidade inconcebível onde não se pode dizer que as coisas são separadas, Dois, ou que são uma unidade, Um. Não Um, Não Dois.
O objectivo então é o reconhecimento total e completo da nossa verdadeira natureza, a condição ultima da realidade como inseparável da Base Pura. Esta Base não é um objecto, não é uma 'coisa' e não é uma entidade. A Base, ou Fonte Suprema,  é inconcebível e para além de palavras ou pensamentos, só pode ser 'sabida' directamente por Vidya. Na Base tudo é auto-aperfeiçoado, todas as qualidades do ser iluminado, como Amor Puro, Compaixão Pura, Sabedoria etc, são aspectos auto-aperfeiçoados, nativos, na Base. Devido a isso, na visão de Atiyoga não é necessário desenvolver nada no Ser-Pessoal-psicológico, é só necessário reconhecer a nossa natureza e manifestar totalmente aquilo que já é intrínseco, pois tudo já é auto-aperfeiçoado - daí o nome Grande-Perfeição. 


Apesar de todas as coisas que aparecem externamente ocorrem no espaço da mente, não são a mente em si, Mas também não são algo diferente da mente. Devido á força dos habitos adquiridos na mente, existe a aparência da dualidade entre sujeito e objecto, Mas no momento em que esse dualidade aparece, não tem realidade alguma. É assim como um rosto reflectido no espelho. Embora o rosto aparece na superficie do espelho, não se encontra lá - mas ao mesmo tempo, não existe outra coisa que provoca o reflexo no espelho. Não estando lá, aparece lá. O reflexo que aparece no espelho, é visto como diferente do espelho, descobre que a diversidade infinita de fenómenos são todos dessa forma.
Para entender de forma simples Atiyana como um caminho espiritual, basta referir directamente as ultimas palavras e testamento do seu fundador, Prahevajra:
 1. Introdução directa a natureza do Ser
 2. Remover todas as duvidas sobre a condição única do Ser
 3. Integrar tudo nesse estado

Como um caminho então, Atiyana depende no aspecto crucial de transmissão. Sem a transmissão do estado fundamental da mente que é introduzido por um amigo espiritual que tem esse conhecimento directo, é muito difícil fazer essa descoberta - é este o primeiro ponto que Prahevajra menciona.
A abordagem em si é simples, mas muito profunda. Começa sempre com 'transmissão'. No caminho de Atiyana existe um conjunto completo de ensinamentos, métodos,  formas de aplicar o caminho e de integração na vida para atingir a descoberta desse estado fundamental até ao despertar total. 




O primeiro Mestre humano a introduzir estes ensinamentos de Mahasandhi foi Prahevajra (tib. Garab Dorje). Este conjunto original de ensinamentos que hoje se refere como 'classe da mente' de Mahasandhi, como distinção de outras variantes que se desenvolveram mais tarde quando estes ensinamentos chegaram ao Tibet no século VIII. Embora existam textos, e uma linha ininterrupta de transmissão oral de Mestres na tradição desde o inicio, encontrar as datas exactas em que Prahevajra nasceu e viveu é difícil. Dependendo de fontes diferentes as datas variam. Não vou aqui apresentar uma apresentação detalhada de todas as historias sobre Prahevajra, mas simplesmente introduzir um pouco desta figura misteriosa, mas que ainda hoje tem uma influencia profunda em muitas tradições espirituais. 



Uma breve introdução á historia

No que diz respeito ao período onde nasceu e viveu, como disse é difícil de estabelecer com exactidão, com referencia a textos da antiguidade e na tradição oral, podemos estabelecer um período desde o ano 55 DC até algures no século VI. Prahevajra nasceu no Reino de Udyana. Nas referencias tradicionais, no antigo Reino de Udiyana havia um grande lago com uma ilha no centro, nessa ilha havia um convento e templo. Uma das monjas, chamada Sudharma, era uma das filhas do Rei Uparaja. Uma noite enquanto dormia teve um sonho. Nesse sonho apareceu um homem luminoso que colocou um vaso de cristal sobre a sua cabeça. Do vaso emanou luz três vezes. Pouco depois deste sonho ela, ainda virgem, engravidou e daí nasceu um rapaz. Desde pequeno era um rapaz prodigioso, e somente com sete anos de idade venceu em debate os filósofos mais famosos do reino. Existem muitas historias de feitos extraordinários e milagrosos. A certa altura deixou a vida no palácio e foi sozinho para as montanhas onde permaneceu em meditação por 32 anos. Eventualmente acabou por deixar o reino e foi para Bodhgaya no norte da India onde ficou o resto da vida. 



Embora os detalhes históricos da vida de Prahevajra estejam envoltos na neblina do tempo, os textos, ensinamentos, e mais importante a linha directa de discípulos que o seguiram é muito clara. Não é de grande importância se consideramos os relatos em existência sobre os detalhes da vida de Prahevajra como factuais ou hagiográficos,  porque o mais importante é que se mantém viva uma linha bem documentada, nunca quebrada, de tradição oral e textual de sabedoria e métodos profundos, que permanece até hoje, e que ao longo da historia  até hoje, produziu inúmeros seres iluminados e totalmente realizados.


O estudante principal e herdeiro foi Manjushrimitra que recebeu transmissão e ficou com Prahevajra durante 75 anos. Manjushrimitra era de origem Indiana, de uma zona perto de Bodhgaya, e era ainda antes de conhecer Prahevajra já bem educado nas escolas de Cittamatra e Yogacara.  Depois continuando a linha, Manjushrimitra deu a transmissão a Sri Simha. De acordo com alguns historiadores modernos como A.W. Barber, Sri Simha acabou por ir para o sul da India onde transmitiu a tradição de Mahasandhi a outros que eventualmente a levaram para a China e Tibete. Os nomes mais conhecidos que receberam a transmissão de Sri Simha são Vimalamitra, Jnanasutra e Vairotsana. 



Nesta breve descrição é importante referir a linhagem directa e ininterrupta que vem de Sri Simha. Foi de Sri Simha que Vairostana recebeu todas as instruções, e foi através de Vairotsana que a linha de Mahasandhi que existe hoje chegou até ao nosso tempo sem interrupção.
No século VIII, o Tibetano Vairotsana foi escolhido pelo Rei para aprender Sanscrito, e treinar na arte de tradução com o objectivo de ir até á India buscar os ensinamentos de Mahasandhi. Foi Vairotsana que viajou até á India para procurar Sri Simha, de quem recebeu a transmissão completa desta tradição. 






Vairostana nasceu no Tibete, era extremamente inteligente e desde muito jovem mostrou sinais de grande capacidade espiritual. Depois de treinado na arte de tradução e em sânscrito, foi para a India em busca de um mestre que possuísse os ensinamentos de mahasandhi. Vairotsana ficou com Sri Simha por bastante tempo até ter recebido tudo, e mais importante, até que realizou por si próprio a natureza ultima. Quando regressou ao Tibete começou por traduzir 5 textos, que são hoje conhecidos como as primeiras cinco traduções, e que formam a raiz da tradição Mahasandhi: O cuco da consciência, A grande Potencia, O voo do Garuda, Ouro Puro e A Bandeira da Vitoria que não se esvanece. Mais tarde outros 13 textos foram traduzidos, culminando na referência principal de Atiyoga: O Kulayarajatantra, ou Tantra da Fonte Suprema. Para além dos textos originais que Vairotsana recebeu de Sri Simha e traduziu, permanence ainda alguns comentários e instruções praticas de Vairotsana em relação á forma de entender e praticar, e a linha de transmissão oral.
Esta linha profunda, inconcebível de transmissão de Mahasandhi está bem viva hoje, com uma linha de transmissão oral nunca quebrada desde a origem com Prahevajra. 

Esta transmissão incrível e profunda de Dzogchen parece ter desaparecido na India após o século VIII, pelo menos na sua forma original, mas foi mantida viva nas linhagens de pratica no Tibete. Foi aqui que mais tarde a tradição de Dzogchen foi sistematizada e organizada em três categorias:  a classe da mente, a classe do espaço e a classe de instruções essenciais. O desenvolvimento e sistematização desta tradição deve imenso a vários dos mestres deste o século IX ao século XIV, como Nubchen Sangye Yeshe e Rongzom Pandita em particular no período inicial, mas foi mais tarde no século XIV que Longchen Rabjam organizou e produzio os textos, e manuais que ainda até hoje são considerados como a referencia maxima desta tradição.