A Sangha de vestes Brancas - A Dança entre Yogis e o mundo
Normalmente a imagem que aparece na mente quando se pensa em Budismo é uma imagem de monges de cabeças rapadas e vestidos de mantos de cor de açafrão ou vermelho (embora não nos podemos esquecer dos que usam castanho, azul ou outras cores como em varias tradições na China, Vietname etc.). Associado a esta ideia está também a ideia da vida monástica e celibatária. Existe a noção que Budistas 'de verdade' são monges e vivem num mosteiro. Esta ideia no entanto não é correcta, e reflecte apenas um aspecto do vasto mundo do 'Budismo'. Existe um outro grupo de praticantes Budistas que são em geral pouco conhecidos, a chamada comunidade de Branco, ou, aqueles que usam as vestes brancas.
São chamados de 'comunidade' ou Sangha de branco porque, em geral, usam vestes de cores brancas. Embora nem todos os membros deste grupo se vistam totalmente de branco ou usem uma túnica totalmente branca, este termo refere-se em geral a este grupo de praticantes, que é um tipo de clero que possui um tipo de ordenação não-monástico.
A Sangha de Branco existe dentro de várias tradições Budistas em muitos países, e manifesta-se de formas diferentes, no entanto em todos os casos refere-se a um grupo especifico de praticantes que não são monásticos e não são necessariamente celibatários na sua forma de vida; mas no entanto estes praticantes manifestam um nível de dedicação e aplicação muito intenso e profundo ao caminho do Dharma, e todos tomaram votos e um tipo especifico de ordenação.
Por vezes este grupo é referido como sendo Budistas Laicos, mas isto não é correcto. Por definição o termo laico aplica-se a alguém que não é perito em algo, alguém que é 'amador' por exemplo, ou neste caso alguém que não possui votos e ordenação religiosa. Os membros de Sangha de Branco são ordenados, e treinam e estudam para ser peritos na sua especifica tradição espiritual de pratica.
A tradição monástica e celibatária Budista é baseada no código de conduta da Vinaya, e nos votos de Pratimoksa, ou de libertação individual. Desde o tempo to Buda o Vinaya teve algumas modificações e varias versões apareceram, embora na sua essência o corpo principal do Vinaya é o mesmo entre as varias versões e tradições. No entanto nem todo o corpo de clero Budista é baseado no Pratimoksa do Vinaya.
Por exemplo no Japão durante o século 9 um mestre muito importante, chamado Saicho, iniciou uma reforma da estrutura monástica para que a ordenação de monges e sacerdotes fosse somente baseado nos votos de Bodhisattva de acordo com os Sutras Mahayana, e não usando mais os votos do Vinaya. Entre outros pontos ele argumentou que no Japão somente se praticava tradições Mahayana, e como tal um sistema monástico baseado no votos de libertação individual do Vinaya não era necessário e era contra-produtivo a posição doutrinal do Mahayana. Ele então defendeu um sistema monástico baseado fortemente na conduta que é explicada no Sutra da Rede de Bhrama e os votos que lá são introduzidos. As reformas que ele iniciou foram adoptadas e hoje em dia praticamente todas as tradições monásticas no Japão usam este sistema. Neste sistema a ordenação é baseada nos votos de Bodhisattva e não existe voto de celibato por exemplo, nem muitos dos outros votos de renuncia que se encontram no Vinaya. Devido a isso é comum que jovens monges passem vários anos num mosteiro a estudar e treinar, e a certa altura deixam o mosteiro, casam e formam família, iniciando depois um percurso como sacerdotes em templos locais a prestar o serviço de orientação espiritual as comunidades locais, sem abandonar os seus votos de monge.
No Tibete encontramos ainda outra expressão desta forma de prática. Enraizada nos princípios do Budismo Vajrayana, encontramos a tradição Ngakpa/Nagmo que entrao no Tibete no século VIII com o famoso mestre tântrico indiano Padmasambhava. De fato, desde o início do budismo no Tibete, tanto a Sangha monástica celibatária ordenada por Pratimoksa, quanto a Sangha não monástica de 'manto branco' dos Ngakpa e Ngagmos de cabelos compridos foram consideradas de estatuto igual.
A tradição Ngakpa é a expressão Vajrayana da Sangha do Manto Branco, e devido à natureza do Vajrayana certamente existem diferenças em relação às outras formas mencionadas anteriormente, porém todas elas têm em comum esse aspecto de uma forma de praticantes ordenados, profundamente comprometidos com o caminho permanecendo fora da instituição monástica. Isso foi estabelecido desde o início do Vajrayana no Tibete, trazido da Índia por Padmasambhava, que disse:
Dharma Sagrado significa conduzir-se apropriadamente Assim, a comunidade de renunciantes monásticos e a comunidade de ngakpas ou iogues tântricos detentores de votos foi estabelecida. Deixe as pessoas escolherem qualquer uma dessas duas orientações religiosas que preferirem.
Esta linhagem de praticantes tântricos ordenados foi levada para o Tibete pelo indiano Mahasiddha Padmasambhava, e parece ter as suas raízes no movimento indiano de Mahasiddhas, ou yogis tântricos, talvez algo como 'Buddhist Saddhus'. Esses seriam os praticantes que receberam votos tântricos completos e ordenação, cuja prática é mais adequada fora de um ambiente monástico. Esta linha foi então introduzida por Padmasambhava, e eles se tornaram conhecidos como 'go-kar chang-lo-de', que significa 'aqueles com vestido branco e cabelos longos'. No início do Vajrayana no Tibete, em particular durante o final do século 8 e durante o século 9, havia muitos centros de treino, e o rei Ralpa Chen até se envolveu no apoio à tradição.
De certa forma, pode-se dizer que Ngakpas e Ngamos são yogis "profissionalmente" religiosos que vivem em um ambiente não monástico e podem não abandonar muitos aspectos da vida normal, como trabalho ou ter uma família, embora alguns vivam em eremitérios ou comunidades com outros e passam longos períodos em retiro. A tradição Ngakpa no budismo tibetano sempre foi muito forte, e ainda é até hoje. De fato, muitos dos maiores mestres da tradição vajrayana foram Ngakpas, como Nubchen Sangye Yeshe, Ronzompa, Dudjom Lingpa, Dudjom Rinpoche etc. casados, e não viviam em mosteiros, mas também não podem ser considerados leigos. Além dos votos Mahayana, o vajrayana-yogi mantém votos vitalícios específicos relacionados aos Tantras e/ou Dzogchen. O princípio básico é que o caminho é uma jornada interior, enraizada na visão da pureza primordial da mente, onde o cultivo do caminho para o despertar não é baseado em fatores externos tanto quanto é uma jornada interior. Os votos e compromissos que são o fundamento da ordenação tântrica são baseados nas iniciações tântricas e expressos nos Tantras; podem variar ligeiramente de linhagem para linhagem, mas em todo caso são compromissos profundos e sérios com o caminho e o despertar total.
Os Ngakpa e Ngagmos ordenados manifestam-se em muitas formas. Alguns vivem uma vida mais eremita, alguns se reúnem em pequenas comunidades, alguns têm famílias e filhos e têm responsabilidades de subsistência. No entanto, seu modelo de vida é tal que eles dedicam muito tempo para estudar, praticar, meditar em retiro e treinar extensivamente. Em alguns casos, eles também podem desempenhar algumas das funções tradicionais do clero para as comunidades locais, como a realização de rituais pelos mortos e outras atividades semelhantes. No Tibete, era normal que muitos desses yogis tivessem famílias, administrassem uma negocio de agricultura, ou alguma outra forma de trabalho e dedicassem até três meses do ano a retiros fechados com retiros mais curtos entre eles. Eles se reúnem em grupos para práticas comunitárias e servem a comunidade local como guias espirituais.
Um desses exemplos foi o famoso Rongzom Chökyi Zangpo (Rongzompa), do século XI. Ele é conhecido como um dos maiores tradutores, estudiosos e yogis do Tibete. Rongzompa era um Ngakpa, ele tinha dois filhos, e seus escritos contêm mais de 100 volumes, e incluiem comentários e tratados que variavam da Filosofia Mahayana à prática tântrica, Dzogchen, gramática e tópicos de agricultura e pecuária leiteira.
Isto não é para subestimar a importância e relevância de um forte ramo monástico, que é muito importante; é igualmente importante a existência de praticantes e devotos leigos; ambos os grupos dependem um do outro para uma comunidade forte que preserva a sabedoria do Buda Dharma. Todas essas diferentes formas de expressão e de viver essa vida de cultivo do caminho são importantes, entrelaçadas e mutuamente dependentes. No ocidente, hoje, a tradição da sangha ordenada vestida de branco começou a aparecer, como era de se esperar. Esta forma particular de ordenação é muito adequada às condições modernas do ocidente, onde o monasticismo tradicional enfrenta muitas dificuldades.
by Ngakpa Ajanatha