O Refugio Supremo


 Qual é o significado de Refúgio? Na tradição Budista, o refúgio é um dos princípios centrais e muito fundamental. Na verdade, é tão importante que em sua grande obra 'A Intenção unica', o grande Mestre Jigten Sumgon disse que o Refúgio é o que verdadeiramente define um praticante Budista. Na realidade, durante nossas vidas normais, nós procuramos refúgio em muitas coisas. Quando alguém tem dor de cabeça, refugia-se numa aspirina. Quando alguém está com sede, refugia-se num copo de água. Esta é uma maneira simples, mas muito útil, de começar a entender o significado de Refúgio. Um objeto de refúgio é algo em que confiamos plenamente, pois nos proporcionará alívio, solução ou ajuda para uma determinada situação. Assim, o refúgio começa com confiança, uma confiança profunda. Cada pessoa sente uma profunda confiança de que um copo de água satisfará sua sede. Essa confiança nos ensinamentos Budistas também costuma ser chamada de devoção. Nesse sentido, poderíamos dizer que quando alguém tem sede sente uma profunda devoção por um copo de água. Se não tivermos essa confiança, talvez não tenhamos muito interesse ou motivação para encontrar verdadeiramente o copo de água. No caso da entrada no Buda Dharma, e durante o caminho, qual é então o objeto de refúgio? Neste caso são três, geralmente chamados de Três Jóias. As Três Jóias são o objeto de refúgio e são o Buda, o Dharma e a Sangha. São chamadas de joias porque são muito raras, difíceis de encontrar; e também porque, uma vez que os encontramos, eles nos darão paz e felicidade, por isso são extremamente valiosos.

  Desta forma, alguém que entra no Buda Dharma se refugia no Buda, no Dharma e na Sangha. Existem, no entanto, várias maneiras de entender as Três Jóias, em diferentes níveis de subtileza. Isso geralmente é explicado como a compreensão externa, interna e última das Três Jóias. No sentido geral, ou no sentido externo, o Buda pode se referir ao Buda Shakyamuni que alcançou o despertar total, ou a qualquer outro Buda; no entanto, o Buda também significa a nossa própria natureza última. O termo Buda realmente significa a dimensão ultimate da realidade, a união do pureza primordial e luminosidade, a verdadeira natureza do ser e da realidade. No Uttaratantra diz:

É incondicionado e presente espontaneamente;
Não é conhecido por causas externas;
Dotado de conhecimento, amor e poder
É a budeidade, a realização do duplo objetivo.

Se queremos saciar nossa sede bebemos um copo de água, se queremos nos libertar do Samsara e do sofrimento e alcançar o despertar onde devemos buscar um exemplo, uma referência e uma ajuda? Em que "direção" devemos fixar o nosso olhar? Desta forma, o Buda, na plenitude do significado desse termo, é um objeto de Refúgio. Isso significa que colocamos as aspirações de nossa vida em direção a Buda, e não a algum outro resultado. Quando nos refugiamos no Buda, os textos tradicionais dizem que fazemos o voto de não prestar homenagem ou nos refugiar em outras divindades mundanas. Mas o que isso significa exatamente? Compreender o significado deste voto realmente ilumina o significado de tomar refúgio no Buda e por que é realmente um ponto tão crucial e fundamental.

Tradicionalmente, o voto é que, uma vez que a pessoa toma refúgio no Buda, a pessoa não se refugia nas divindades mundanas; como Isvara, 'a Deusa da Terra', ou o 'Deus Sol' e assim por diante; hoje em dia nos tempos modernos talvez isso não seja tão relevante, porém o voto tem um significado muito mais profundo. Talvez em algumas culturas, se alguém tem uma enxaqueca, poderá procurar refúgio no espírito do vento e fazem algum tipo de ritual para solicitar ao espírito do vento que remova sua enxaqueca. Hoje em dia a maioria das pessoas simplesmente toma um comprimido; o objeto de refúgio é diferente. Neste caso o refúgio é o comprimido. No entanto, neste caso, o problema não é uma dor de cabeça, para a qual podemos tomar um comprimido; quando se trata desse aspecto do refúgio, a questão que está sendo considerada é a felicidade última, a libertação, o fim de todo sofrimento. Em algumas culturas, talvez eles rezassem aos deuses para irem a algum lugar celestial onde todo o seu sofrimento terminaria. Em nossa sociedade moderna, talvez muitas pessoas nem mesmo tenham refúgio nesse sentido, o que explicaria tantos problemas que vemos. Portanto, o verdadeiro significado aqui é que, uma vez que nos refugiamos no Buda, não procuramos a felicidade suprema em nenhum outro lugar porque entendemos o princípio do Samsara e do Nirvana, da existência condicionada e do estado de Buda, e entendemos que a única resolução total para a situação de Samsara é o caminho nobre ensinado pelos Budas, e o despertar total. 

Hoje em dia, talvez algumas pessoas se refugiem na política ou na ciência. Talvez pensem que é possível criar algum sistema político, económico e social que resolva todos os problemas e traga felicidade total, e assim refugiam-se no sistema político em busca da felicidade. Talvez outros se refugiem na ciência, pensando que através do desenvolvimento científico será encontrada uma solução definitiva para o sofrimento, ou apenas um comprimido antidepressivo perfeito. Algumas pessoas talvez se refugiem em substâncias intoxicantes, buscando ali aquela felicidade. Assim, neste sentido, em nossos dias modernos, refugiar-se em 'divindades mundanas' também pode ser entendido como refugiar-se em coisas como 'sistemas políticos', ciência, substâncias e assim por diante, com a ideia de que tais coisas são o caminho para resolver os sofrimentos de seres vivos, obter felicidade e bem estar, como se fosse algo de real e permanente. Mas isso claro não é possível. 

  Alguém que se refugia no Buda não tem tais ilusões; eles sabem muito bem que, embora seja muito útil e totalmente razoável tomar um comprimido para uma  dor de cabeça, não há felicidade final a ser encontrada em nenhum desses sistemas. Dessa forma, eles definem a direção de suas vidas para o caminho nobre e para a descoberta da mente de Buda que é sua própria natureza, seguindo o exemplo de Buda Shakyamuni, que é o guia definitivo. Isso porque o nobre caminho e todos os ensinamentos do Buda têm um único propósito - a descoberta da verdadeira natureza e condição do ser e da realidade. Não há outra solução além dessa.


O segundo objeto de refúgio é o Dharma. Geralmente o Dharma refere-se aos ensinamentos e ao caminho. Se alguém realmente deseja se libertar da existência condicionada e atingir o estado supremo, deve saber como fazê-lo? Onde ir? O que fazer? As pessoas geralmente vivem suas vidas de maneira muito aleatória. Eles aprendem alguns exemplos de sua família e cultura, baseiam-se em suas próprias experiências passadas e tentam tomar decisões sobre como viver, o que é bom, o que é mau e assim por diante. E assim, para o bem ou para o mal, fazem o possível para serem felizes. No entanto, dessa forma, eles nunca conseguem escapar do ciclo de renascimento e confusão. Como exemplo poderíamos pensar neste contexto do Dharma como sendo um mapa de uma floresta muito densa. Se alguém está caminhando numa floresta muito grande, densa e desconhecida, ficaria muito feliz, grato e totalmente devotado àquele belo mapa que comprou na loja para turistas. Essa pesssoa protege o mapa dentro de uma capa plástica para que não se molhe, guarda-o na bolsa. Esse mapa é a coisa mais importante que a pessoa leva consigo. O Dharma é o Mapa de como sair da ilusão, do sofrimento, do Samsara. Em um sentido mais último, o Dharma é a natureza da própria realidade - a clara consciência da sabedoria primordial do Estado Primordial, que é o Dharma final e no qual os budistas confiam como refúgio no sentido do Dharma. Mas a confiança no Dharma não é uma questão de dogma ou fé. As bases do Dharma são apresentadas e analisadas de forma coerente e baseado em observação directa da realidade das nossa existência. 

Há outros aspectos aqui também. Normalmente, como mencionado antes, as pessoas vivem como aprenderam, influenciadas por sua própria cultura, famílias etc. No entanto, tudo o que se refere à tradição cultural, ou seja, como uma cultura vive tradicionalmente, nem sempre é positivo e raramente é realmente útil. Por exemplo em algumas culturas poderia ser considerado muito positivo matar um animal todos os anos em certos dias especiais. Considerando que, se matarem o animal e o oferecerem a uma divindade, receberão alguma recompensa. Se alguém vivesse pela tradição dessa cultura, só se aprofundaria no sofrimento porque está cometendo o ato de matar, e causar sofrimento a outro ser vivo, e ao mesmo tempo se está a regozijar com isso. Também é muito comum hoje em dia e é considerado muito importante se uma pessoa cresce para se tornar muito poderosa e rica, e se alguém não é rico ou de alguma posição elevada, eles são de alguma forma menos valiosos como pessoas. Se observarmos a maioria dos hábitos culturais, descobriremos que eles são baseados em grande ilusão, egoísmo, hedonismo, materialismo e valores frequentemente muito pervertidos. Se confiarmos nos valores culturais tradicionais como uma forma de guiar nossas vidas, não apenas não encontraremos a saída do Samsara, mas muitas vezes vamos criar ainda mais problemas. Dessa forma, nos refugiamos no Dharma e, ao fazê-lo, a partir desse momento, fazemos o voto de nunca causar mal ou usar violência deliberadamente a outros seres vivos, e tomar o Dharma como nosso mapa para a libertação. É a saída, e com profundo respeito a protegemos a todo custo!


O terceiro objeto do Refúgio é a Sangha. A Sangha em geral refere-se à assembleia de praticantes do Buda Dharma. Existem dois tipos de Sangha: o Sangha realizado e o Sangha comum. A Sangha realizada refere-se a todos os Budas e Bodhisattvas que alcançaram o despertar e a libertação do Samsara. A sangha comum refere-se aos praticantes no caminho que ainda não estão livres e ainda sob a influência de emoções perturbadoras e ignorância, em menor ou maior extensão. Neste caso, o objeto de refúgio refere-se apenas à Sangha Realizada, pois são os que já estão fora do Samsara e podem ser um exemplo genuíno, ajuda e apoio. A Sangha comum, embora sejam os irmãos e irmãs do Dharma que ajudam e se apoiam uns aos outros, não podem ser considerados refúgio porque ainda estão sob a influência da ignorância. Qual é o significado aqui? O significado aqui é bastante simples - qualquer pessoa tem sempre a tendencia de se tornar como os seus amigos e como as pessoas que admira! As pessoas com quem mantemos companhia e confiamos como amigos, ou as pessoas pelas quais sentimos admiração, eventualmente vamos tentar ser como eles, ou vamos nos transformando em algo semelhante. Então devemos escolher sabiamente. Esse é, em essência, o significado de se refugiar na Sangha. Significa olhar para as incríveis qualidades e exemplos do Buda e de todos os Bodhisattvas e mestres despertos do passado, e tomá-los como exemplos. Aspiramos a ser como eles e aprender com eles. Portanto, com esse entendimento, é importante manter a atenção e tentar ao máximo nos rodear de bons amigos espirituais que estimulem  as nossas melhores qualidades, como generosidade, bondade, paciência, sabedoria e que são uma inspiração e apoio para nosso caminho espiritual e vida. Desta forma, até mesmo a sangha comum dos praticantes torna-se um solo fértil onde todos podem crescer juntos.

Os ensinamentos e reflexões sobre o Refúgio e as Três Jóias são extremamente profundos. Muitas vezes, este tópico pode ser descartado como algo muito simples e básico, e talvez apenas para iniciantes, mas isso não é verdade. Um praticante nunca deve ser separado do Refúgio; dependendo do seu nível de experiência, estando no nível externo, nível interno ou nível final. No final, o refúgio final é o Dharmakaya, a essência luminosa da mente de Buda, como diz o Uttaratantra:

Porque um será abandonado e o outro é enganoso,
Porque [cessação] é uma simples ausência, e porque ainda há medo,
O duplo Dharma e a nobre Sangha
Não são o refúgio mais elevado e eterno.
Em última análise, o refúgio de todos os seres
é somente o estado de Buda .
Pois o Sábio incorpora o Dharma e é
O objetivo final da Assembléia.


e o Sūtra de Demonstração de Gratidão diz,

O Venerável Ananda perguntou: “O que é o Buda no qual nos refugiamos?” O Buda respondeu: “Você se refugia no dharmakāya; você não se refugia no rūpakāya.” Ananda então perguntou: “Qual é o Dharma no qual nos refugiamos? E o Buda respondeu: “Você se refugia no Dharma último, não no Dharma relativo.” Ananda então perguntou: “Qual é a Sangha na qual nos refugiamos?” E o Buda respondeu: “Você se refugia na Sangha última, não na Sangha relativa.”

Desta forma deve ficar claro o quanto é importante aprender, entender e refletir sobre o princípio do refúgio em todos os níveis, compreendendo finalmente o significado último do refúgio, a união da essência, a pureza primordial, claridade e energia dinâmica, que em o fim são subsumidos sob o ponto essencial de refúgio, o Dharmakaya.

Nesse sentido, do ponto de vista Dzogchen, o Refúgio é a natureza da mente, o estado primordial. O Buda, o Dharma e a Sangha estão todos subsumidos ou incluídos na realização da consciência primordial - então, em última análise, o estado primordial, ou claridade-sapiente-intrínseca, é o refúgio autêntico e definitivo para aqueles que buscam a liberdade total.


com amor,
por Ajanatha